Artigo escrito pela presidente do comitê técnico do Instituto  Defesa Coletiva, Lillian Salgado em coautoria com Elen Prates, diretora executiva do Instituto, é publicado no Conjur.

Leia alguns trechos abaixo:

“Em 27 de fevereiro, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, manifestou a intenção do governo federal de criar o “consignado do setor privado”. Embora tal normativa ainda não tenha entrado em vigor, estando neste momento em discussão pelo Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o Instituto Defesa Coletiva, o Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor (FNECDC), o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), e os Procons Brasil já expressaram, por meio de nota, o repúdio à intenção da modificação no procedimento de concessão do empréstimo consignado aos trabalhadores e trabalhadoras formais, por meio da integralização das plataformas FGTS digital e E-social.

Nossas preocupações não são apenas jurídicas — em razão da violação à Lei nº 14.181/2021 — mas também, com os impactos potencialmente negativos da medida para a economia brasileira. O endividamento excessivo é uma realidade premente no cenário econômico global e, mais especificamente, no Brasil. Dados do Banco Central evidenciam que a proporção da renda comprometida com dívidas atingiu níveis alarmantes nos últimos anos, indicando uma preocupante vulnerabilidade financeira por parte dos consumidores e consumidoras. Segundo o BC, “a maior parte dos endividados de risco mantém relacionamento com o segmento bancário tradicional, mas as instituições de crédito são as que apresentam, em média, as maiores concentrações de clientes nessa situação em suas carteiras”.

 Nesse sentido, a modificação pretendida afronta a Lei nº 14.181 de 2021 (Lei do Superendividamento) que alterou o Código de Defesa do Consumidor (CDC) inserindo a previsão de garantir a preservação do mínimo existencial, entendido como o conjunto de diretos básicos e essenciais à sobrevivência dos brasileiros e brasileiras, que, infelizmente, sofrem constantes ameaças tanto pelo superendividamento quanto pela diminuição do poder de compra. A medida sugerida pelo governo federal tende a aumentar o risco de endividamento e superendividamento dos brasileiros e brasileiras, haja vista que o crédito fácil pela utilização da plataforma não garantirá a análise do mínimo existencial.”

(…)

Benefício para quem?

“Nesse sentido, o argumento de que a medida do FGTS Digital facilita o crédito ao consumidor ou consumidora, na verdade, somente beneficia as instituições financeiras, que tomam proveito da vulnerabilidade das pessoas e das taxas de juros elevadas. Via de consequência, a retirada do saque do FGTS Aniversário não traz nenhum benefício ao consumidor ou consumidora. Na prática, a implementação do E-consignado acaba substituindo o FGTS Aniversário, o que transforma o recurso em um instrumento que beneficia a instituição financeira em detrimento do trabalhador, desvirtuando o caráter social do FGTS.

O FGTS foi criado, em 1966, para proteger o trabalhador e a trabalhadora demitida sem justa causa, compensando em parte a retirada da estabilidade comum à época. Na realidade, a implementação do E-Consignado representa novo retrocesso, já que há grande risco de uso do recurso de forma imprudente e até mesmo criminosa. Logo, é inconcebível que um recurso criado para proteger o trabalhador formal acabe por prejudicá-lo, gerando novos endividamentos, sendo totalmente sucumbida a sua função social. Essa desvirtualização do FGTS – direito constitucionalmente garantido pelo art. 7º, III, da CR/88 – revela um preocupante caminho tomado pela economia do país, já que os trabalhadores e trabalhadoras, teoricamente, precisam colocar em xeque um recurso tão valioso para suprir as necessidades básicas do dia a dia.

Vale ressaltar ainda, o caráter social do FGTS para financiamento imobiliário. Dados [10] da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário (Abecip) apontam que financiamentos imobiliários feitos com recursos do FGTS cresceram 59% em 2023, atingindo novo recorde, combinados com o programa Minha Casa Minha Vida. Logo, é contraditório e incoerente que o E-Consignado prejudique políticas públicas do próprio governo federal.

É inconcebível que essas operações sejam substituídas por empréstimos consignados, que não possuem nenhuma função social. O Fundo de Garantia tem um lugar de aconchego no imaginário da população brasileira, pois historicamente contribui para a realização de sonhos como a aquisição da casa própria. Destaca-se aqui que o problema não é como o trabalhador ou trabalhadora utilizará o recurso, mas sim as consequências que esta medida trará a médio e longo prazo para toda a sociedade.”

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