A visão do TJMG à famigerada prática do telessaque

Camila Oliveira Souza[1]

Elen Prates de Souza[2]

Lillian Jorge Salgado[3]

 RESUMO

O artigo analisa a prática lesiva e corriqueira realizada pelas instituições financeiras, a qual vem ganhando cada vez mais espaço no mercado financeiro, denominada de Telessaque. Tal modalidade tem gerado uma oferta exacerbada de crédito aos consumidores hipervulneráveis pelas instituições financeiras, na ganância de alavancar os lucros sem, muitas vezes, se preocupar com a regulamentação do crédito consignado, as formalidades necessárias para esse tipo de contratação, os princípios da boa-fé, equidade e transparência, tão esperados na fase pré-contratual, o que tem causado diversos transtornos a milhares de consumidores. O presente trabalho abordará, precipuamente, a visão do Poder Judiciário Mineiro ante a maléfica prática de crédito realizada de maneira totalmente obscura e que, na maioria das vezes, é investida de procedimentos fraudulentos.

PALAVRAS-CHAVES: Empréstimo. Telessaque. Hipervulnerabilidade. Cartão de Crédito Consignado. Direito à informação. Fraude. TJMG. Poder Judiciário. Consumidor. Amostra grátis.

  

1 INTRODUÇÃO 

 

Ao longo do presente relato, analisaremos a prática do Telessaque, um produto direcionado aos aposentados e pensionistas do INSS, a qual foi idealizada pelas instituições financeiras com o fito de minimizar os custos advindos da operacionalização do empreendimento, de modo a proporcionar maior lucratividade ao fornecedor com o auxílio dos meios tecnológicos.

Porém, a tecnologia que facilita a vida dos consumidores, ao mesmo tempo cria situações inusitadas e traiçoeiras. O crédito fácil que permite a realização dos sonhos, quando desacompanhado da devida informação, orientação e respeito, leva a um quadro de superendividamento e desestabilização familiar.

Neste artigo serão abordados brevemente os aspectos jurídicos da prática do telessaque, bem como o posicionamento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

 

2 NUANCES JURÍDICAS DA OPERAÇÃO DO TELESSAQUE 

 

Inicialmente, torna-se imperiosa a conceituação da prática do Telessaque, a fim de lograr melhor entendimento acerca das nuances jurídicas e desdobramentos que ressurgem dessa operação financeira, com os flagrantes confrontos aos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor e dos princípios norteadores que envolvem a legislação consumerista.

 

 

2.1 Conceito de Telessaque 

 

A prática denominada como “Telessaque” trata-se de uma funcionalidade atrelada ao cartão de crédito consignado em que o consumidor autoriza via telefone, ou solicita, “novo empréstimo”, cujo valor é creditado em conta e as parcelas são lançadas em uma fatura e descontadas, em seu valor mínimo, da reserva de margem consignada do cartão de crédito consignado, ou seja, do benefício de aposentadoria recebido do INSS.[4]

Em linhas gerais, nada mais é do que uma operação financeira realizada por meio de ligação telefônica e atrelada ao cartão de crédito consignado. O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de conceituar a prática, nos seguintes termos:

 

(…) O produto cartão de crédito consignado assemelha-se à contratação de empréstimo consignado na medida em que o crédito concedido é abatido/pago mensalmente a partir da sua Reserva de Margem Consignável (RMC), nos termos contratados. Contudo, possui a especificidade de não estar atrelado a um valor de empréstimo previamente acordado. No caso dos cartões de crédito consignado, o crédito concedido está atrelado ao uso do cartão de crédito emitido com o fim de conceder crédito rotativo. É possível ainda ao consumidor realizar empréstimos pontuais descontados da fatura e sua RMC, operação essa denominada TELE SAQUE. (STJ – AResp n. 1274207 – Min. Antônio Carlos Ferreira – Quarta Turma – Dje 29.06.2018)

 

Na perspectiva das instituições financeiras, trata-se de uma operação autônoma em relação ao crédito consignado, onde, supostamente, os consumidores já teriam aderido aos cartões de crédito e recebem a oferta da disponibilidade do limite de crédito do referido cartão, em um momento posterior.

A prática denominada “Telessaque” consiste no oferecimento, ao consumidor, do limite rotativo do cartão de crédito, como um empréstimo fixo.

Como se sabe, o crédito rotativo representa a modalidade mais cara de crédito ofertada no mercado de consumo, haja vista que, nessa categoria, há a disponibilização imediata e integral do montante, no momento desejado pelo cidadão. Isto é, o consumidor tem acesso à verba desejada sem necessidade de aprovação prévia do Banco ou da realização de qualquer burocracia. O dinheiro fica integralmente disponibilizado ao cliente, que pode usá-lo no momento que desejar, como ocorre no cheque especial e no cartão de crédito. Justamente por essa disponibilidade imediata é que essa modalidade de crédito conta com a incidência do percentual de juros mais alto do mercado.

No empréstimo fixo, ao contrário, há uma análise e aprovação prévia da Instituição Financeira que, somente a partir da solicitação do consumidor, passa a disponibilizar o dinheiro. Em razão de haver prévia análise e ajuste do tempo de pagamento, o empréstimo fixo possui incidência de juros menor que o crédito rotativo.

Entretanto, tem sido possível vislumbrar que a prática não ocorre com a mesma tecnia apresentada em seu conceito original, o que tem ensejado relatos de diversos consumidores narrando fatos e situações que aparentam ter resultados e finalidades dissociados dos anunciados pelas instituições financeiras.

 

2.2 O modus operandi das instituições financeiras

 

Segundo se infere de massivos relatos de consumidores, constantes das plataformas de solução de conflitos, a contratação não possui tantos benefícios quanto demonstrados e não ocorre nos termos literais em que são anunciados pelas instituições financeiras. Tem sido possível verificar, pelo menos, duas modalidades em que o Telessaque ocorre.

Na primeira modalidade, o Banco, mediante ligação telefônica, oferece um limite disponível para compras no cartão de crédito consignado para os consumidores, em especial aposentados e pensionistas, como se fosse um empréstimo comum e extremamente vantajoso, creditando o montante em dinheiro na conta corrente ou poupança do consumidor.

Segundo se constata, a maioria dos aposentados e pensionistas aceitam o Telessaque sem possuírem a mínima ideia da operação de crédito que estão contratando. E muitos sequer contrataram o referido cartão de crédito consignado.

Como é uma operação que pode ser liquidada em até 84 meses (sete anos), o limite de crédito para saque é, em regra, maior que o benefício previdenciário do cliente. Assim, o desconto máximo permitido (5%) no benefício não liquida o empréstimo efetuado pelo Telessaque na primeira fatura mensal.

Devido à baixa capacidade de compreensão do cliente típico[5] do cartão de crédito consignado, ele não entende que os 5% (cinco por cento) descontados no seu benefício apenas pagam os juros e amortizam 1/84 (um oitenta e quatro avos) do valor disponibilizado a título de “Telessaque”. De tal modo que esse cidadão acaba por se tornar refém da operação por até sete anos, haja vista que, na maioria das vezes, consoante as reclamações registradas nos órgãos de defesa do consumidor, o Banco não envia o cartão de crédito e tampouco as faturas para dar a possibilidade do pagamento integral, sem a incidência dos juros do “rotativo”.

Percebe-se que o típico usuário do cartão de crédito consignado não tem o conhecimento de que os juros no Telessaque chegam a ser o dobro dos juros do empréstimo consignado.

Como dito, o saque é embutido na contratação, de modo que o consumidor sequer tem ciência de que o valor será creditado em sua conta. Isto é, o cidadão contrata o cartão de crédito, acreditando que o saque se trata de uma mera faculdade/opção que somente será ativado se solicitado, contudo, é surpreendido com o depósito do montante em sua conta. Nesse momento, é informado que, na requisição do cartão feita por meio de ligação telefônica, foi contratado o saque.

Assim, no próprio contato telefônico, o consumidor repassa seus dados pessoais e a contratação do saque é realizada no mesmo ato da pactuação do cartão de crédito, ou em alguns dias após o primeiro contato. Depois da ligação telefônica, um determinado montante em dinheiro é depositado na conta do consumidor, sendo que, na ampla maioria das vezes, o cidadão não possui ciência dos motivos que ensejaram no depósito, devido a sua hipervulnerabilidade, como é o caso dos aposentados e pensionistas.

Após dias ou mesmo meses da realização do depósito pelo Banco, o consumidor percebe que estão sendo descontados valores em seu benefício. Nesse momento, ele procura se informar acerca da origem dos descontos, descobrindo que se trata de depósito efetuado pelo Banco, sem o seu consentimento, o qual está atrelado ao cartão de crédito consignado.

Dessa forma, depreende-se que, em muitos casos, a Instituição Financeira realiza depósitos na conta de seus clientes, sem a anuência, ou mesmo ciência das cláusulas contratuais e dos riscos da má utilização do serviço, pois deixa de informar dados essenciais para após cobrar o valor depositado, acrescido de juros e demais encargos financeiros, por meio de descontos infindáveis aos benefícios dos consumidores.

Por outro lado, tem sido possível verificar que há momentos em que os bancos entram em contato com o consumidor oferecendo o cartão de crédito consignado, mas, após a sua recusa, ainda assim, encaminham faturas relativas ao cartão que sequer fora solicitado e desbloqueado pelo consumidor.

A segunda modalidade de atuação é caracterizada pela liberação de empréstimo mediante depósito em conta dos consumidores, sem qualquer autorização ou solicitação prévia. Nesses casos, os consumidores são surpreendidos com valores disponíveis em suas contas bancárias, sem que tivessem realizado qualquer solicitação.

Em alguns momentos, a Instituição Financeira entra em contato oferecendo o empréstimo consignado, o consumidor recusa, mas, ainda assim, recebe o depósito de valores em sua conta.

O problema que aparece fácil, não se finda tão fácil assim. Infere-se das reclamações existentes nas plataformas de resolução de conflitos que os consumidores enfrentam muitas dificuldades para saber de onde surgiu o depósito não autorizado e depois enfrentam desafios para devolver aos bancos os valores creditados em sua conta corrente, sem a devida autorização e referentes a um contrato que jamais foi celebrado.

Para findar a ilustração acerca do modus operandi das instituições financeiras, tem sido possível constatar casos ainda mais graves, em que o cartão de crédito jamais foi contratado, tampouco a operação do Telessaque e o consumidor jamais recebeu o crédito em sua conta, mas, ainda assim, tem valores descontados de seus benefícios previdenciários.

 

2.3 Violação ao direito de informação 

 

Apesar dos avanços da tecnologia, percebe-se que o Código de Defesa do Consumidor tem se mostrado uma legislação extratemporal, pois, embora tenha mais de 30 anos, consegue atender perfeitamente as novas nuances surgidas com o Telessaque.

Com efeito, seu artigo 31 prevê que as ofertas devem conter todas as informações imprescindíveis para a contratação, observe:

 

Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores. (BRASIL, 1990).

 

Acerca do direito à informação, diretamente ligado também ao princípio da transparência, Cláudia Lima Marques[6], brilhantemente, ilustra:

 

O princípio da transparência rege o momento pré-contratual e rege a eventual conclusão do contrato. É mais do que um simples elemento formal, afeta a essência do negócio, pois a informação repassada ou requerida integra o conteúdo do contrato (arts. 30, 33, 35, 46 e 54), ou se falha representa a falha na qualidade do produto ou serviço oferecido (arts. 18, 20 e 35). Resumindo, como reflexos do princípio da transparência temos o novo dever de informar o consumidor. (MARQUES, 2006, p. 178).

 

Se as ofertas do crédito por telefone, por si só, já são um dilema, pois não contêm todas as informações necessárias acerca do contrato, o ato de contratação por telefone é um problema deveras maior.

Nesse momento, os consumidores estão assumindo uma contratação onerosa de duração longínqua, em que terão valores descontados diretamente de seus pagamentos, sem terem conhecimento de quais ônus e implicações legais estão assumindo.

A informação, pilar de todas as contratações, é perpetuada no inciso III do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe ser direito básico do consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem” (BRASIL, 1990).

Mais adiante, o artigo 52 do referido diploma legal elenca quais informações os consumidores devem ter no momento das contratações. Veja:

 

Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:

I – preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;

II – montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros;

III – acréscimos legalmente previstos;

IV – número e periodicidade das prestações;

V – soma total a pagar, com e sem financiamento. (BRASIL, 1990).

 

Tem-se verificado que estas informações, infelizmente, não chegam ao conhecimento dos consumidores no momento da contratação por telefone. A uma, porque muitos consumidores contratam o cartão de crédito sem possuírem ciência da contratação embutida de um empréstimo, com a consequente creditação de valores em suas contas; a duas porque, quando cientes da contratação, não recebem nenhuma informação concreta dos atendentes acerca da operação de crédito, do índice dos juros pactuados, das consequências do inadimplemento e dos riscos da má utilização do crédito.

Assim, as informações repassadas por telefone no momento da contratação aparentam não ser suficientemente claras para possibilitar a compreensão dos consumidores sobre as características desse empréstimo, pois constata-se que, muitas vezes, os atendentes falam rápido e se utilizam de expressões dúbias para induzir o consumidor a celebrar a contratação.

Além disso, tem-se constatado que os consumidores, em muitos casos, não recebem, em sua casa, a cópia do contrato celebrado e, consequentemente, não têm acesso aos termos contratuais, tampouco às cláusulas limitativas (artigo 54, § 4º, CDC) às quais estão aderindo, o que faz com que o negócio jurídico seja realizado completamente “no escuro”.

 

Não é para menos que, pouco tempo após a contratação viciada, diversos consumidores têm se insurgido contra as instituições financeiras, alegando desconhecimento de determinados termos da contratação.

Já antevendo situações como essas, o Código de Defesa do Consumidor conferiu extrema relevância ao conhecimento das cláusulas contratuais, de modo a desonerar os consumidores de quaisquer obrigações assumidas, sem o conhecimento prévio de seu conteúdo. Veja:

 

Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. (BRASIL, 1990).

 

O conhecimento prévio do conteúdo – materializado pelo direito à informação – traduz os princípios da transparência e da boa-fé contratual, os quais devem estar presentes em todas as fases do contrato, seja na fase pré-contratual, quando da publicidade dos produtos/serviços; seja na fase contratual com a oferta e contratação propriamente dita; seja na fase pós-contratual, quando da execução do contrato.

Além disso, nesses casos, o consumidor também fica tolhido das informações referentes à legitimidade da Instituição Financeira contratante, tendo em vista que ele não consegue averiguar a veracidade da identificação do atendente, o que gera grave falta de segurança acerca do negócio jurídico que vier a ser celebrado.

Destarte, verifica-se que o princípio da informação e da transparência nas relações de consumo são deveres dos prestadores de serviço e alçados à prioridade pelo CDC. Portanto, é possível afirmar que o dever de informação é uma obrigação que, além de ser necessária, decorre do princípio da boa-fé, presente no sistema do CDC, sendo caracterizado como um dever essencial e básico (art. 6º, inciso III) para a concretização de uma perfeita harmonia e transparência nas relações travadas entre consumidores e fornecedores (BRASIL, 1990).

Diante disso, conclui-se que essa harmonia e transparência são inexistentes no Telessaque, motivo pelo qual a contratação de crédito consignado por telefone transgride seriamente o princípio da boa-fé contratual, da informação e da transparência, norteadores das relações de consumo (art. 4º, inciso III, e art. 6º, III e IV, todos do Código de Defesa do Consumidor). (BRASIL, 1990).

 

 

2.4 Violação ao direito de escolha

  

Além do direito de informação, a prática do Telessaque também viola seriamente o direito de escolha dos consumidores. Isso porque, ao receberem o depósito de valores por determinada Instituição Financeira, os consumidores acabam sendo impingidos à contratação, contra sua vontade e sem a possibilidade de escolher o produto que apresenta condições mais interessantes.

Nessa perspectiva, a operação de Telessaque transforma o crédito rotativo do consumidor em empréstimo fixo. Dessa forma, essa operação fere frontalmente o direito de escolha do consumidor, que é impelido a usar o seu crédito rotativo como empréstimo fixo, sem quaisquer esclarecimentos por parte do Banco e em situação de extrema onerosidade.

Sabe-se que a carência financeira é refletida, pontualmente, na escolaridade dos cidadãos, fazendo com que, em regra, a população mais desprovida de recursos corresponda àquela com menor nível intelectual. Por essa razão, os cidadãos atingidos pela prática ilícita do Banco são aqueles que possuem situação financeira menos favorecida, justamente os indivíduos mais carentes e hipervulneráveis.

O direto à liberdade de escolha é considerado direito básico do consumidor, intitulado no inciso II do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor:

 

Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:

 II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; (BRASIL, 1990).

 

A possibilidade de escolha tem supedâneo no princípio da liberdade de ação e no princípio da escolha, previstos na Constituição Federal (arts. 1º, inciso III, 3º, inciso I, 5º, caput, entre outros), além de possuir relação direta com o princípio da vulnerabilidade, previsto no inciso I, do art. 4º do CDC, pois quando se fala em “escolha” do consumidor, ela já nasce reduzida (BRASIL, 1988 e BRASIL, 1990). Isto porque o consumidor só pode optar por aquilo que existe e foi oferecido no mercado, o que não ocorre com o Telessaque, tendo em vista que a oferta é decidida unilateralmente pelos fornecedores, visando seus interesses empresariais, que são, por evidente, os da obtenção de lucro.

Assim, a violação ao direito de escolha se revela justamente no fato de as instituições financeiras tolherem a escolha do consumidor, que sempre ficará obrigado a anuir com o saque do valor disponibilizado a título de margem consignável, de forma parcialmente consciente, ou mesmo, na ausência dessa informação.

Com a imposição do saque para a contratação do cartão de crédito consignado, só resta ao consumidor aceitar a condição manifestamente excessiva, caso deseje ter acesso ao produto. Em cenários piores, ocorre a imposição da contratação, sem sua anuência ou mesmo ciência do contrato, prevalecendo nitidamente a superioridade da Instituição Financeira nas relações de consumo.

Acerca da utilização da superioridade econômica para impingir, aos consumidores, produtos e serviços, o doutrinador Cleber Masson (2019, p. 499)[7], assim dispõe: “De fato, uma vez assegurada a liberdade de escolha do consumidor, não poderá o fornecedor, aproveitando-se de sua superioridade econômica ou técnica, impedi-lo de optar por outros produtos e serviços no mercado de consumo (…)”.

Em verdade, é possível constatar que o Telessaque viola a liberdade de escolha dos consumidores desde a oferta por telefone, como aduz Júlio Morais Oliveira (2019, p. 85): “Ademais – atualmente o mercado as exerce cada vez mais –, técnicas extremamente agressivas de marketing e publicidade nos deixam na dúvida se realmente o consumidor está exercitando sua liberdade de escolha”.[8]

É exatamente nesse cenário que as disposições do Código de Defesa do Consumidor entram em ação, conforme elucida Cláudia Lima Marques [9]:

 

O Código de Defesa do Consumidor reconhece a importância das novas técnicas de vendas, muitas delas agressivas, do marketing e do contrato como forma de informação do consumidor, protegendo seu direito de escolha e sua autonomia racional, através do reconhecimento de um direito mais forte de informação e um direito de reflexão. (MARQUES, 2006, p. 176).

 

Deveras, as instituições financeiras se valem da ignorância dos consumidores e da agressividade do telemarketing para conseguir lograr êxito em seu intento, para impingir aos cidadãos mais carentes modalidade de crédito mais cara e não desejada. Para além disso, verifica-se que os bancos transformam a natureza do crédito rotativo, ao oferecê-lo como crédito fixo, ferindo os direitos de escolha e de informação adequada dos consumidores menos favorecidos economicamente.

 

 

2.5 Amostra grátis – Parágrafo único do art. 39 do Código de Defesa do Consumidor 

 

Apesar de o Telessaque ser uma abusividade contemporânea, o seu antídoto já está previsto há décadas na seção de práticas abusivas, no parágrafo único do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, equiparando, às amostras grátis, os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, sem solicitação prévia, inexistindo a obrigação de pagamento.

Desse modo, para os casos em que os consumidores tiveram depositados em suas contas determinados montantes em dinheiro, sem qualquer autorização ou solicitação prévia, deverá incidir a sanção prevista no art. 39, parágrafo único do CDC, in verbis:

 

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: 

III – enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço;

Parágrafo único. Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento. (BRASIL, 1990).

 

O dispositivo legal supracitado refere-se ao instituto da amostra grátis, sendo pertinente sempre que o fornecedor entregar ao consumidor qualquer serviço/produto sem sua solicitação prévia, este passará a pertencer ao consumidor sem custo algum.

É o que deve ser aplicado de forma equiparada aos depósitos realizados unilateralmente, decorrentes da prática do Telessaque, tendo em vista que há a creditação de valores nas contas dos consumidores sem sua solicitação, ou anuência.

Assim, foi a decisão da Ilustríssima Juíza Célia Ribeiro de Vasconcelos da 6ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte – Minas Gerais, nos autos do processo nº 5155410-90.2019.8.13.0024 que, sabiamente, aplicou a amostra grátis em sede de tutela antecipada, nos seguintes termos:  

 

No caso dos autos, o pedido no sentido de que o banco seja proibido de depositar qualquer valor nas contas dos consumidores sem a devida anuência e desbloqueio do cartão constitui uma proteção básica e óbvia. O banco através de seus prepostos não pode simplesmente depositar um valor na conta do consumidor sem que ele tenha expressado de forma idônea a vontade de contratar.

Isso obriga o consumidor a se deslocar de sua rotina para descobrir a origem do recurso e para se livrar dessa situação indesejada. Alguns consumidores, muitas vezes, não acompanham assiduamente suas contas-correntes e, assim, somente percebem o fato depois de alguns meses quando os descontos começam a incidir. Nesse caso, são obrigados a aceitar o fato indesejado porque ficou parecendo que aquiesceram ao “empréstimo”.

Em relação a esse pedido antecipatório, há probabilidade do direito diante da grande possibilidade de vício de consentimento na formação do contrato e há perigo de demora, pois a conduta está sendo praticada de forma intensiva conforme demonstram as reclamações dos consumidores no PROCON.

A multa a ser aplicada deve ser fixada em 100% do valor que vier a ser depositado indevidamente na conta do consumidor. (TJMG – 1ª instância – Juíza Célia Ribeiro de Vasconcelos – Comarca de Belo Horizonte – MG. Processo nº5155410-90.2019.8.13.0024)

 

A decisão de primeira instância do TJMG é vanguardista, pois em sede de Ação Civil Pública, até onde se tem notícia, foi a primeira a determinar, em sede liminar, a atribuição da amostra grátis, resguardando o direito garantido em lei desde o advento do CDC.

Dessa forma, o poder judiciário aplicou de forma coerente a sanção pouco utilizada. Com a tutela de urgência, a instituição financeira fica proibida de creditar qualquer valor sem a devida anuência do consumidor, quer em conta corrente, quer em conta poupança, assim como de realizar qualquer operação de crédito, via telefone (Telessaque), vinculado ao cartão de crédito e empréstimo consignado, sob pena de multa equivalente a 100% do valor que vier a ser depositado indevidamente ou liberado ao consumidor, respectivamente. Qualquer saque deve ocorrer somente de forma presencial, em caixa eletrônico, mediante desbloqueio do cartão e uso de senha.

 

 

2.6 Os elementos que o caracterizam como prática abusiva

  

Para além do direito à informação, a prática do Telessaque se enquadra em vários incisos do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor que elenca quais práticas são consideradas como abusivas.

Logo em seu primeiro inciso, é possível verificar que uma das nuances do Telessaque caracteriza prática abusiva. Observe: “I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;”(BRASIL, 1990).

Infere-se dos contatos telefônicos relatados pelos consumidores que a oferta do cartão de crédito está obrigatoriamente vinculada ao depósito em conta de determinados valores. Ou seja, não é possível contratar apenas o cartão de crédito simples, o consumidor é obrigado a aceitar o depósito em sua conta, caso tenha interesse em receber o cartão, o que caracteriza uma espécie de venda casada.

Nesse contexto, surge a segunda prática abusiva prevista:

 

IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços; (BRASIL, 1990).

 

Essa situação é caracterizada quando se observa o público-alvo da prática: aposentados (pessoas idosas) ou pensionistas do INSS, grupo conhecidamente protegido como vulnerável, muitas vezes semianalfabetos, hipervulneráveis e que, por diversos motivos sociais, acabam aceitando as contratações sem refletir acerca de todas as suas consequências.

É cristalina a prevalência da ignorância desses consumidores como motivo decisor para a contratação do crédito. Com efeito, a idade avançada não permite ter conhecimento dos termos mais difíceis do contrato ou da novidade da contratação de empréstimo vinculada a um cartão de crédito.

De semelhante modo, a condição social de grande parte dessa categoria é alarmante: muitos já se encontram inseridos no endividamento e veem sua situação agravada por um crédito adquirido sem que suas consequências e desdobramento sejam analisados.

Essa soma de fatores, plenamente conhecida pelas instituições financeiras, faz com que essa categoria seja um grupo fácil para se impingir produtos e serviços, o que acarreta também em prática abusiva.

Não é necessário muito esforço para se imaginar a posição de fragilidade que os consumidores que realizam essa contratação por telefone possuem. As instituições financeiras fazem contato no sossego de seus lares, forçando-os a aceitar um produto/serviço sem saber corretamente do que se trata, colocando-os em uma desvantagem manifestamente excessiva, prática abusiva abaixo demonstrada:

    V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; (BRASIL, 1990).

 

Nesse ponto, impende destacar que o artigo 51 do CDC prevê como nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada e incompatível com a boa-fé. No mesmo artigo, é entendido como vantagem exagerada aquela que restringe direitos fundamentais inerentes à natureza do contrato (inciso II) e que se mostram excessivamente onerosas para o consumidor, diante da natureza e conteúdo do contrato (inciso III).

No pior dos cenários, ocorre também a prática abusiva prevista no inciso VI:

 

VI – executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre as partes. (BRASIL, 1990).

 

Para os casos em que os consumidores sequer solicitaram o cartão de crédito consignado ou o depósito de valores em sua conta, é despiciendo tecer maiores comentários, pois a execução de serviços, como depósito em contas e envio de cartões, sem solicitação e autorização expressa do consumidor é prática que contraria severamente os bons costumes e já vem sendo rechaçada há muito tempo pelo Poder Judiciário.[10]

 

 

2.7 Infrações às normas regulamentadoras

  

Em 2003, foi promulgada a Lei nº 10.820/2003 que dispõe sobre a autorização para o desconto de prestações em folha de pagamento. Mais especificamente acerca dos descontos nos benefícios previdenciários pagos pelo Instituto Nacional da Seguridade Social, a norma, atualizada pela Lei nº 13.172, de 2015, assim determina:

 

Art. 6º. Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do Regime Geral de Previdência Social poderão autorizar o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS a proceder aos descontos referidos no art. 1º desta Lei, bem como autorizar, de forma irrevogável e irretratável, que a instituição financeira na qual recebam seus benefícios retenha, para fins de amortização, valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil por ela concedidos, quando previstos em contrato, nas condições estabelecidas em regulamento, observadas as normas editadas pelo INSS.  (BRASIL, 2003). (Sem grifos no original).

 

Para regulamentar o artigo acima transcrito, o INSS expediu a Instrução Normativa INSS nº 121/2005 que regula a realização de empréstimos consignados, em consonância com o Código de Defesa do Consumidor, prevendo uma série de requisitos a serem observados pelas instituições financeiras, dentre os quais se encontra o pleno e total esclarecimento do cliente sobre o valor do empréstimo contraído, a quantidade de parcelas, o valor de cada parcela, o valor dos juros cobrados, etc. (INSS, 2005).

Nesse sentido, a Instrução Normativa INSS nº 39/2009, prevê expressamente em seu artigo 3º, inciso III, a invalidade da autorização dada pelo aposentado ou pensionista por meio de ligação telefônica.

 

Artigo 3º Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão por morte, pagos pela Previdência Social, poderão autorizar o desconto no respectivo benefício dos valores referentes ao pagamento de empréstimo pessoal e cartão de crédito concedidos por instituições financeiras, desde que:

I – o empréstimo seja realizado com instituição financeira que tenha celebrado convênio com o INSS/Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social – Dataprev, para esse fim;

II – mediante contrato firmado e assinado com apresentação do documento de identidade e/ou Carteira Nacional de Habilitação – CNH, e Cadastro de Pessoa Física – CPF, junto com a autorização de consignação assinada, prevista no convênio; e

III – a autorização seja dada de forma expressa, por escrito ou por meio eletrônico e em caráter irrevogável e irretratável, não sendo aceita autorização dada por telefone e nem a gravação de voz reconhecida como meio de prova de ocorrência. (INSS, 2009). (Sem grifos no original)

 

De uma análise dos itens acima colacionados, infere-se que os requisitos para autorização dos descontos nos benefícios do INSS não são alternativos, mas sim cumulativos, de modo que, para que a autorização seja considerada válida, é necessário que o empréstimo seja realizado mediante contrato assinado, com a apresentação de documento do consumidor e com sua autorização de forma expressa.

No Telessaque, ainda que, em alguns casos, o consumidor concorde em realizar a operação, não há a assinatura de contrato e tampouco a apresentação de seu documento pessoal para legitimar a contratação, o que pode abrir brechas para contratações fraudulentas.

Em verdade, ainda que isso fosse possível, a própria norma regulamentadora expedida pelo INSS proíbe expressamente que seja concedida qualquer autorização por telefone, o que, por si só, já torna essa prática eivada de vício.

Nesse diapasão, visando conferir uma segurança maior à contratação de empréstimo consignado, o artigo 6

º da Lei nº 10.820/03 prevê que os titulares de benefício e pensão do RGPS poderão autorizar o INSS a proceder com os descontos. (BRASIL, 2003).

Deveras, como o contato telefônico ocorre apenas entre consumidor e instituição financeira, não há a participação do INSS ou mesmo a celebração de um contrato escrito com autorização assinada pelo consumidor, consentindo que o INSS proceda com esses descontos.

Assim, extrai-se o entendimento de que a efetivação dos descontos nos benefícios dos aposentados e pensionistas somente é lícita após a formalização do contrato de empréstimo, contendo as assinaturas e o termo de autorização para desconto, os quais devem ser encaminhados ao INSS[11], o que não ocorre no caso do Telessaque.

Dessa forma, apesar de praticada em desobediência a diversos preceitos legais, constata-se que vários são os fatores jurídicos e morais que recomendam a não realização do Telessaque, ou seja, do saque em montante em dinheiro por meio de ligação telefônica, vinculados ao cartão de crédito consignado e empréstimo consignado.

 

 

3 A VISÃO DO PODER JUDICIÁRIO MINEIRO

 

O surgimento de um elevado número de reclamações e casos tem levado algumas entidades de defesa do consumidor a ajuizarem ações civis públicas, visando tutelar os interesses de toda a sociedade. É o caso do Instituto Defesa Coletiva situado no Estado de Minas Gerais.

A entidade civil, devido ao alto número de reclamações, ajuizou cinco[12] ações civis coletivas, em parceria com outros órgãos[13], em face dos principais bancos que realizam a prática do Telessaque.

Dentre elas, quatro possuem decisão liminar em vigor, a fim de que as Instituições Financeiras se abstenham de realizar o saque por meio de ligação telefônica, garantindo que a operação seja realizada apenas em caixa eletrônico, mediante o uso de cartão plástico e senha, como forma de assegurar a livre escolha do consumidor e impedir que a Instituição Financeira credite qualquer valor não desejado.

Há, ainda, casos em que a determinação judicial vai no sentido de determinar que o valor depositado sem o consentimento do consumidor seja destinado como “compensação” do dano que lhe foi causado, ou até mesmo a título de amostra grátis, conforme previsão expressa do Código de Defesa do Consumidor.

Nesse ponto, salienta-se que a proibição da realização de saque no cartão de crédito consignado não é pleiteada nas ações civis públicas. Requer-se, apenas, que seja proibida a realização do saque por meio de ligação telefônica, como forma de evitar fraudes e assegurar o direito de escolha e informação adequada dos consumidores.

Vale ressaltar que na Ação Coletiva interposta em face do Banco Pan foi aplicada a amostra grátis, prevista no parágrafo único, do art. 39 do CDC, já determinando que o banco se abstenha de creditar quaisquer valores na conta bancária dos consumidores sem sua anuência, sob pena de multa de 100% do valor depositado, bem como que cessem as operações de crédito via telefone, através do cartão de crédito consignado, também sob multa de 100% do valor liberado.

Através dessas ações civis públicas, já é possível ter uma dimensão do posicionamento do Judiciário sobre essa emblemática no âmbito coletivo. À guisa de exemplo, colaciona-se, abaixo, a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO COLETIVA – DIREITO DO CONSUMIDOR – PRELIMINARES DE INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA E AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR – REJEIÇÃO – CRÉDITO EM CONTA SEM A ANUÊNCIA DO CORRENTISTA – ILEGALIDADE – OPERAÇÕES DE CRÉDITO VIA TELEFONE – “TELE SAQUE” – ABUSIVIDADE. (…)Ainda que a contratação do cartão de crédito siga a forma prescrita em lei, a oferta desse serviço “facultativo” de saque ocorre via telefone, induzindo-se à contração de novo empréstimo, bastando mera autorização para o lançamento do crédito na conta do consumidor. Referida prática viola o direito à informação, a boa-fé e à função social do contrato, sobretudo porque geralmente os consumidores a ela sujeitados – pensionistas ou aposentados – são pessoas idosas e vulneráveis em inúmeros aspectos (saúde, conhecimento, condição social etc.) (art. 39, IV do CDC). A abusividade não reside propriamente na opção de saque atrelada ao cartão de crédito consignado, mas sim na oferta deste tipo de crédito pela via da ligação telefônica. Ademais, a norma do art. 39, III do CDC também veda ao fornecedor a execução de serviços ou a entrega de produtos “sem prévia autorização” ou “solicitação do cliente”, o que torna abusivo o crédito na conta bancária do consumidor sem sua clara, informada e insuspeita autorização ou anuência. (TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.19.145399-2/001, Relator(a): Des.(a) Manoel dos Reis Morais , 20ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 19/08/0020, publicação da súmula em 20/08/2020). (Sem grifos no original).

 

No decorrer do voto, o desembargador relator Manoel dos Reis Morais reconhece que a contratação do crédito consignado deve ser pessoal, de modo que não pode ser aceita autorização por telefone, conforme, inclusive, preceituam as Instruções Normativas 28 e 39 do INSS. Assim, tendo em vista que essa operação não deixa de ser uma forma de contratação de empréstimo realizada via telefone, mostra-se nítida que ela burla a intentio legislativa quanto à forma de pactuação do contrato.

Extrai-se das referidas ações coletivas que, além do pedido de condenação por danos morais individuais e coletivos, há o pleito de que os depósitos realizados na conta dos consumidores sejam considerados como amostra grátis, nos termos do parágrafo único do art. 39 do CDC.

O resultado de ações como as mencionadas é extremamente importante para a sociedade de consumo, pois beneficia consumidores de todo o país, orienta os demais integrantes do Sistema Nacional acerca do entendimento do Poder Judiciário, bem como evita o ajuizamento de múltiplas demandas para solucionar o mesmo conflito.

Essa decisão não se mostra isolada, é possível encontrar diversas outras decisões[14] judiciais, inclusive do Superior Tribunal de Justiça (AREsp n. 1.274.207/SP), que descortinam a prática do Telessaque e rechaçam a possibilidade de continuidade dessa operação em nossa sociedade, porquanto viola diversas normas legais, morais e principiológicas.

Contudo, faz-se imperioso destacar que, embora a lesividade da prática seja flagrante, o Poder Judiciário Mineiro não é unânime e há decisão em sentido diverso, em que não se observa a literalidade da lei. Nesse ínterim, cita-se a decisão proferida pela 11ª Câmara Cível:

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – RELAÇÃO DE CONSUMO – SERVIÇOS BANCÁRIOS – TELE SAQUE – PRELIMINAR DE LITISPENDÊNCIA – REJEITADA – ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA – AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA O DEFERIMENTO – MANUTENÇÃO DA DECISÃO – NECESSIDADE. Não há litispendência quando a causa de pedir e os pedidos são distintos, nos termos do art. 337, §1º do CPC. A teor do que dispõe o art. 300, do CPC, a tutela de urgência será concedida quando presentes os requisitos (probabilidade do direito e perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo). Se as provas não demostram efetivamente as condutas lesivas ao consumidor decorrentes do serviço de tele saque, inviável a concessão da tutela antecipada pretendida, porquanto não comprovada a probalidade do direito, bem com a urgência do pedido. (AGRAVO DE INSTRUMENTO-CV Nº 1.0000.19.151391-0/001 – COMARCA DE BELO HORIZONTE – AGRAVANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DE MINAS GERAIS, INSTITUTO DEFESA COLETIVA – AGRAVADO: BANCO BMG S/A).

 

Do voto condutor, extrai-se que, para os nobres julgadores, o fato de existir um suposto documento que é enviado conjuntamente com o cartão de crédito consignado, o qual esclareceria taxa de juros, condições contratuais, por si só, já supriria qualquer ausência de informação. Porquanto, devemos ressalvar, como já delineado anteriormente, que na maioria das vezes o consumidor sequer recebe o cartão de crédito consignado, em outras, nega a oferta, mas, mesmo assim, é surpreendido com um depósito em conta e o envio do cartão.

A grande questão é o tratamento desigual concedido às instituições financeiras, já que para o Banco “X” é vedada a conduta, enquanto para o Banco “Y” é permitida a lesão. Ora, não estaria o Poder Judiciário privilegiando a desigualdade entre os consumidores?

Logo, percebe-se que grande parte do Poder Judiciário e, até mesmo, o Superior Tribunal de Justiça já descortinaram a prática maléfica do Telessaque, porém é necessário fazer o alerta de que, se a jurisprudência não se mantiver coerente, poder-se-á colocar em risco a igualdade entre os consumidores e a livre concorrência entre as instituições bancárias.

Ademais, não restam dúvidas de que, na perspectiva dos consumidores, as decisões favoráveis em ações coletivas acelerariam a solução do conflito de forma administrativa e fomentariam a isonomia entre os lesados, tendo em vista que todos receberiam o mesmo tratamento e teriam os valores de indenização proporcionais aos que foram recebidos a título do valor depositado sem o devido consentimento, já que o montante constante da penalidade é arbitrado em porcentagem.

Em que pese o Telessaque ser uma abusividade dos tempos modernos, sua sanção foi prevista há mais de três décadas na seção de práticas abusivas, no parágrafo único do art. 39 do Código de Defesa do Consumidor, equiparando às amostras grátis os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues aos consumidores, sem solicitação prévia, inexistindo a obrigação de pagamento. 

Diante de todo o exposto, é possível concluir que, pelos posicionamentos da sociedade, dos consumidores e do próprio Poder Judiciário, é possível fazer um prospecto de que essa nova tendência continuará a ser refutada até que as instituições financeiras finalmente entendam pela cessação dessa conduta.

 

4 CONCLUSÃO 

 

Pelo exposto neste artigo, é possível concluir que a prática do Telessaque está diretamente ligada a um dos bens mais essenciais para manutenção da sobrevivência e qualidade de vida dos idosos: seu benefício mensal ou sua aposentadoria.

A conclusão de operações de crédito por meio de telefone demonstra ser nociva para esse público hipervulnerável, quer pela falta de informação adequada, quer pela ausência de boa-fé contratual, quer seja pela facilitação de fraudes e coação, muitas vezes, oriunda da própria família.

Nessa perspectiva, observa-se que a modalidade de contratação via telefone, que originalmente foi instituída como forma de conveniência ao consumidor, se encontra corrompida, de modo que se tornou instrumento de fraudes e práticas ilícitas, situação que impõe uma atuação incisiva do Poder Judiciário para resguardar os direitos e a segurança dos dados dos cidadãos brasileiros.

E, embora a prática maléfica tenha sido descortinada por grande parte dos Magistrados, e, até mesmo pelo Superior Tribunal de Justiça, vislumbra-se que entendimentos conflitantes ainda são aplicados.

Nesse viés, entendemos a necessidade de uniformização do tema pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a fim de que mantenha sua jurisprudência coerente, garantindo segurança jurídica e isonomia aos lesados.

Assim, é possível concluir que a modernidade gerou uma série de comodidades, dentre elas o avanço digital, contudo, algumas práticas contratuais – como o Telessaque – acabaram despontando como extremamente abusivas à sociedade.

 

ABSTRACT

 

 

The article analyzes the harmful and common practice carried out by financial institutions, which has been gaining more and more space in the financial market, called Telessaque. Such modality has generated an exacerbated offer of credit by financial institutions, without, many times, worrying about the regulation of payroll loans, the necessary formalities for this type of contracting, nor the principles of good faith, equity and transparency, so expected in the pre-contractual phase, which has caused several problems to thousands of consumer complaints. The present work will mainly address the view of the Minas Gerais Judiciary in the face of such an evil credit practice, which is carried out in a totally obscure manner, and which, in most cases, is invested with fraudulent procedures.

 

 

KEYWORDS: Loan. Telessaque. Hypervulnerability. Payroll Credit Card. Right to information. Fraud. TJMG. Judiciary. Consumer. Free sample.

 

 

REFERÊNCIAS: 

 

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[1] Advogada; Assessora jurídica do Instituto Defesa Coletiva.

[2] Advogada; Diretora Executiva do Instituto Defesa Coletiva e Integrante da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG.

[3] Advogada; Sócia Fundadora do escritório Lillian Salgado Sociedade de Advogados, Presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva, Integrante da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG, Diretora de Proteção de Dados do INSS do IEPREV. Conselheira do Fundo Municipal de Defesa do Consumidor, Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais.

[4] Conceito extraído do artigo “Telessaque: prática lesiva dos bancos é descortinada pelo Poder Judiciário”, escrito por Lillian Salgado e Camila Oliveira Souza. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-nov-20/opiniao-Telessaque-pratica-lesiva-descortinada-judiciario>

[5] Apenas 7% das pessoas acima de 50 anos são capazes de interpretar textos e resolver problemas que exigem maior planejamento, como cálculos de porcentagem e proporção, por exemplo. FONTE: Pesquisa Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF Brasil 2016).

[6] MARQUES, Cláudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor/ Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem – 2. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

[7] ANDRADE, Adriano. Interesses difusos e coletivos. Cleber Masson, Landolfo Andrade. – 9. Ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019.

[8] OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de Direito do Consumidor Completo – 5. ed.- Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2019.

[9] Vide nota de rodapé nº 02.

[10] Conforme se infere da Apelação Cível nº 0012663-71.2012.8.26.0127 com tramitação no TJSP.

[11] Conforme Parecer Técnico nº 10/2018 do Procon-MG. Assunto: PAAF 0024.16.017447-0- Direito dos Idosos- Instituições Financeiras- Análise quanto à legalidade- Empréstimo Consignado para Aposentados- Contratação Via Terminal Eletrônico. Elaborado por Camila Oliveira, atualmente advogada, e Christiane Vieira Soares Pedersoli, analista do Ministério Público de Minas Gerais.

[12] Processos nº 5155455-94.2019.8.13.0024 (em face do Banco Safra), n º 5155410-90.2019.8.13.0024 (em face do Banco Pan), nº 5154588-04.2019.8.13.0024 (em face do Banco BMG) nº 5041991-58.2020.8.13.0024 (em face do Banco Olé Consignado), nº 5155320-82.2019.8.13.0024 (em face do Banco do Cetelém).

[13]Na Ação Civil Pública contra o Banco Pan são autores o Instituto Defesa Coletiva, o Procon Uberaba e a Defensoria Pública-MG. Nas Ações Civis Públicas contra o Banco, Banco Olé, Banco BMG e Banco Safra figuram no polo ativo o Instituto Defesa Coletiva e a Defensoria Pública de Minas Gerais.

[14] Vide notas nº 01, 02 e 03.

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