Limites territoriais da coisa julgada em demandas de natureza coletiva

Camilo Zufelato[1]

Lillian Salgado[2]

O Supremo Tribunal Federal reconheceu, em decisão publicada em 14 de fevereiro do ano corrente, a existência de repercussão geral no RE 1.101.937/SP – Tema 1.075, no qual se analisa a constitucionalidade do art. 16 da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) e, por corolário, a extensão territorial da coisa julgada oriunda de ação coletiva.

A lide originou-se de ação civil pública proposta pelo IDEC em face de dezesseis Instituições Financeiras, na qual se objetivou a revisão de contratos do Sistema Financeiro de Habitação – SFH. Após regular tramitação, houve acolhimento de diversos pedidos, inclusive no STJ. Nesta sede, a discussão jurídica cingiu-se aos limites subjetivos da coisa julgada que recaiu sobre a procedência dos pedidos.

A Corte Especial do STJ entendeu, então, pela extensão dos limites subjetivos da decisão a todo o país, desaplicando o referido art. 16, para aplicar os artigos 93 e 103, ambos do CDC.

Contra essa decisão as Instituições Financeiras interpuseram recursos extraordinários, os quais foram monocraticamente providos pelo Relator, Ministro Alexandre de Moraes, dando ensejo a interposição de agravo interno pela entidade civil atuante na defesa dos consumidores.

No julgamento, em sede de agravo interno, o Ministro Relator invocou dois fundamentos para manter o limite territorial estabelecido pelo art. 16 da Lei da Ação Civil Pública: a Corte Especial do STJ teria desrespeitado o entendimento do Plenário do STF no RE 612.043-RG/PR (Tema 499) e teria desrespeitado, também, o entendimento fixado na ADI 1576.

A decisão do ministro Alexandre de Moraes foi objeto de novo agravo interno, no qual se pleiteou a não incidência do art. 16 da LACP às decisões proferidas em sede ação civil pública, em atenção á toda a sistemática estabelecida pelo microssistema processual coletivo brasileiro.

Em análise do novo agravo interno, o Ministro Relator considerou consistentes os argumentos colocados pela entidade civil, recomendando que a matéria tivesse sua repercussão geral apreciada.

Na decisão publicada em 14 de fevereiro do ano corrente, o STF, por maioria, reputou constitucional a questão ora debatida, reconhecendo a existência de repercussão geral da matéria suscitada, para admitir o recurso e determinar o seu regular processamento no Pretório Excelso.

Importante ressaltar que o Ministro Alexandre de Morais não determinou a suspensão nacional dos processos com objeto correlato, razão pela qual todos os feitos que discutam a limitação territorial da decisão proferida em sede de tutela coletiva devem permanecer em legítima tramitação, porquanto a suspensão prevista no parágrafo 5º, do art. 1.035 do CPC, não decorre automaticamente do reconhecimento da repercussão geral, dependendo de determinação expressa do relator do caso, consoante entendimento da própria Corte Suprema, no julgamento de questão de ordem no RE 966.177/RS.

Vê-se que dentre todos os institutos processuais da tutela coletiva, a coisa julgada sempre exerceu papel de destaque, recebendo tratamento específico e compatível com a função que ela exerce em um modelo processual que busque a efetividade da tutela jurisdicional. De nada adiantaria a construção de um modelo processual coletivo, dotado de apurada técnica processual, se o resultado concreto da prestação jurisdicional – representado pela coisa julgada que se forma sobre o comando judicial – não lhe fosse compatível.

Muitas linhas já foram escritas em torno do referido art. 16 da LACP. Trata-se de uma das poucas hipóteses de quase absoluta e integral unanimidade em relação às críticas a ele desferidas. A doutrina amplamente majoritária defende a inconstitucionalidade do dispositivo. Os fundamentos são os mais variados: atenta contra a isonomia (permite contraditórios, rectius confltio entre duas ou mais coisas julgadas, a medida em que estimula o ajuizamento de várias demandas para tratar do mesmo fato); atenta contra o acesso à justiça (permite que sujeitos afetados pelo dano não sejam tutelados); atenta contra a razoabilidade e proporcionalidade (impõe a cisão da autoridade da coisa julgada que recai sobre direito incindível) etc.

Para além dos fundamentos de inconstitucionalidade, há outros, de natureza infraconstitucional, que dizem respeito à aplicabilidade do dispositivo ao chamado microssistema processual coletivo. Isso porque o tema da coisa julgada é tratado por dois dispositivos legais, o art. 16 da LACP, e o art. 103 do CDC. Por força do diálogo normativo e hermenêutico existente ex vi legis, art. 21 da LACP e art. 90 do CDC, faz-se necessário que o tratamento contraditório entre os dois dispositivos legais seja solucionado.

Nesse sentido, também de maneira praticamente unânime, a doutrina sustenta a ineficácia do art. 16 da LACP e a aplicabilidade do art. 103 do CDC, pois embora ambos versem sobre o mesmo assunto, o tratamento mais amplo e mais recente fora dado pelo art. 103 do CDC, o qual, portanto, é que regula o tema da coisa julgada nas demandas coletivas. Isto porque se está claramente diante de um conflito normativo entre normas de mesmo status legal, de modo que a última e mais completa acaba por derrogar a mais antiga e incompleta.

Não obstante, destaca-se que o referido art. 16 da LACP é totalmente incompatível com a sistemática do microssistema processual coletivo, na medida em que torna incompossível a sua concomitante aplicabilidade com inúmeros outros institutos processuais vigentes.

No mesmo sentido do posicionamento doutrinário, o Superior Tribunal de Justiça, desde 2011, consagrou em importantes julgados a não aplicabilidade do art. 16 da LACP. Dentre tais precedentes, merecem destaques os seguintes: O EREsp. n° 1.134.957/SP, da Corte Especial, que aplicou o art. 103 do CDC em detrimento do art. 16 da LACP para demanda coletiva que versava sobre direitos individuais homogêneos, pela Corte Especial; os REsp. n.° 1.349.188/SP e REsp. n.° 1.315.822/RJ, para os quais não se aplica a limitação do 16 da LACP para nenhuma das espécies de direitos difuso, coletivo e individual homogêneo.

É louvável a atual posição jurisprudencial do STJ em torno do tema, pois reconhece a ineficácia do dispositivo que intentava restringir territorialmente os limites subjetivos da coisa julgada no âmbito da tutela coletiva, restabelecendo a coisa julgada ultra partes, na extensão do objeto decidido, sem qualquer vinculação à competência do órgão prolator da decisão.

O STF, contudo, parece ir em sentido oposto ao entendimento pacificado pela doutrina e pelo Superior Tribunal de Justiça. Os argumentos trazidos pela Suprema Corte para defender a manutenção da aplicação do art. 16 da LACP, data máxima venia, não se mostram válidos e adequados.

Alega o STF que a negativa de aplicação do art. 16 da LACP viola o entendimento fixado pelo Plenário desse Tribunal no RE 612.043/PR – Tema 499. Tal fundamento, todavia, não procede, pois não há qualquer relação de identidade entre o RE 1.101.937/SP e o RE 612.043/PR, haja vista que abordam situações fático-jurídicas distintas, o que impede a sua aplicação como caso paradigma, nos termos do diploma processual civil. Isto porque o RE 612.043/PR (Tema 499) é precedente do STF aplicável às ações propostas por associações na qualidade de representantes processuais dos seus associados, nos termos do art. 5°, XXI, da CF. Ao passo que o RE 1.101.937/SP versa sobre genuína ação coletiva, interposta por substituto processual, com base nas normas de regência da tutela coletiva, para a defesa de direitos individuais homogêneos.

Sustenta, ainda, o STF que a negativa de aplicação do art. 16 da LACP viola o entendimento fixado na ADI 1576-MC. Novamente se verifica a improcedência do fundamento utilizado pela Corte Suprema, haja vista que o referido precedente não tratou de forma suficientemente adequada a questão da constitucionalidade do art. 16 da LACP, uma vez que houve tão somente decisão precária, de natureza cautelar, sobre o tema, caracterizada como obter dictum, portanto. Ademais, salienta-se que é totalmente indiferente a discussão sobre a constitucionalidade ou não do art. 16 da LACP, uma vez que os fundamentos determinantes, utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça para afastar a aplicação da referida disposição legal, são todos de natureza infraconstitucional, o que por si só já torna processualmente incabível a análise da constitucionalidade pelo STF.

Assim, embora o Supremo Tribunal Federal tenha sinalizado incialmente entendimento que atenta contra um dos principais institutos da tutela coletiva brasileira, verifica-se que a questão ainda se encontra pendente de julgamento, podendo ser revertida face aos fundamentos numerosos e consistentes apresentados pela doutrina e pelo próprio STJ.

Espera-se que a Corte Suprema se posicione no sentido da aplicação do art. 103 do CDC, em detrimento do art. 16 da LACP, a fim de assegurar abrangência nacional à coisa julgada coletiva, para que os instrumentos da tutela coletiva alcancem seus objetivos de proporcionar a ampliação do acesso à justiça, com o consequente tratamento isonômico dos jurisdicionados e a redução da morosidade da prestação jurisdicional.

 

[1] Doutor em processo civil pela USP; Professor doutor de processo civil pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP; Conselheiro Científico do Instituto Defesa Coletiva.

[2] Advogada especialista em ações coletiva; Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG; Componente do Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais; Presidente do Comitê Técnico do Instituto de Defesa Coletiva.

 

 

 

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