Decreto do mínimo existencial: uma conta que não fecha!

 

 

Lillian Salgado

Foi editado e publicado em Diário Oficial pelo Governo, no último dia 26 de julho, o Decreto no 11.150/2022, que regulamenta a “preservação e o não comprometimento” do mínimo existencial para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento em dívidas de consumo, nos termos do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa
do Consumidor (CDC).

O Instituto Defesa Coletiva, por intermédio do seu Comitê Técnico do qual eu presido, em razão da publicação do Decreto, que, absurdamente, definiu o mínimo existencial nas relações de consumo em 25% do salário mínimo, quer demonstrar através deste artigo os fundamentos de inconstitucionalidade e ilegalidade do referido ato do presidente da República.

A norma editada tem por objetivo “regulamentar” o mínimo existencial previsto na Lei no 14.181/2021, que alterou o Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo diretrizes para preservação e tratamento do superendividamento

no Brasil. Porém, no exercício dessa atribuição legal, o chefe do Poder Executivo teve por bem fixar em 25% do salário mínimo o montante da renda do consumidor destinado às despesas básicas para a sobrevivência. De pronto, já é possível identificar que o ato transbordou os limites da espécie normativa denominada Decreto.

Vejamos: o Decreto é um ato infralegal que deve ser utilizado para regulamentar uma lei, isto é, sua base e seus limites emanam da legislação. Nesse sentido, a regulamentação por decreto não pode limitar ou diminuir aquilo que a lei estabeleceu. Além disso, o Decreto afronta essa básica premissa da hierarquia de normas do ordenamento jurídico brasileiro, incorrendo em desrespeito ao art. 84, IV, da Constituição da República, porque esvaziou por completo a Lei que deveria regulamentar. Em outros termos, a publicação do referido Decreto funcionou como uma verdadeira revogação das normas da Lei no 14.181/2021, vez que com ela não guarda qualquer compatibilidade.

A Lei no 14.181/2021 positivou medidas para prevenção e tratamento do superendividamento no Brasil. Para tanto, atribuiu aos fornecedores, como os bancos, o dever de oferecer crédito de forma responsável, com a promoção do aconselhamento e de informações claras ao consumidor. A legislação, estabeleceu, também, balizas para o tratamento da pessoa superendividada, demonstrou clara opção de priorizar a preservação dos direitos básicos do consumidor, buscando diminuir o estigma social decorrente da inadimplência, resgatando a dignidade do cidadão, por meio da proteção do seu mínimo existencial.

Essa essência legal não foi contemplada no Decreto no 11.150/2022, que, subvertendo a sua função da regulamentação, diminuiu o alcance e a efetividade da Lei no 14.181/2021 ao estipular em 25% do salário mínimo o percentual correspondente ao valor destinado para as despesas básicas do consumidor superendividado. Além de fixar um valor de mínimo existencial que não condiz com a Lei no 14.181/2022, o Decreto excluiu do seu cálculo dívidas que, segundo a citada lei, deveriam constar da equação do mínimo existencial, tais como as operações decorrentes de crédito consignado, o que retira do Decreto sua validade jurídica. Ademais, o percentual de 25% não poderá ser atualizado de acordo com o salário mínimo a cada ano, vez que o Decreto estabeleceu que caberá ao Conselho Monetário Nacional promover a alteração do valor do mínimo existencial. Desta forma, o que identificamos, é um verdadeiro disparate contra a
sociedade brasileira, pois foi desconsiderada uma das maiores mazelas do país: a perda de poder de compra do cidadão em decorrência da inflação.

A edição do Decreto no 11.150/2022 fere também o caráter democrático que se espera da regulamentação de uma lei de tamanha importância para o mercado de consumo brasileiro, como a Lei no 14.181/2021. No ponto, percebe-se que foram ignoradas todas as contribuições dos órgãos e das entidades de defesa do consumidor, especialmente as discussões ocorridas na audiência pública
promovida pela Senacon, para discussão do mínimo existencial, em outubro de 2021. O Instituto Defesa Coletiva desenvolveu trabalho relevante, baseando-se em dados científicos e econômicos expostos no parecer econômico da economista Adriana Fileto, mestre em finanças pela UFMG. O estudo foi apresentado a Senacon, por meio do OFÍCIO 2021-25.10-197, encaminhado à Secretaria, nas
datas de 25/10/2021 e 4/4/2022. A entidade rechaça a fixação de um percentual fixo de mínimo existencial, sugerindo um escalonamento calculado sobre a renda do consumidor.

Primeiro, conforme aponta o parecer técnico da economista Adriana Fileto, com base na Pesquisa Sobre Orçamentos Familiares (POF), que é realizada pelo IBGE, desde 1974, as despesas que devem compor o mínimo existencial são: alimentação, habitação, vestuário, transporte, higiene e cuidados pessoais, assistência à saúde e educação. Assim, o percentual de mínimo existencial deve ser calculado pela soma dessas despesas, de acordo com sete níveis de renda que correspondem aos níveis pré-determinados na POF que variam entre 1 (um) salário mínimo e mais de 12,5 salários mínimos. Ademais, considerando a extensão territorial do Brasil, as características de consumo variam regionalmente e essas diferenças devem ser contempladas pelo mínimo existencial. Sendo assim, deve-se adotar percentuais específicos para cada uma das 5 regiões do país.

Nota-se, por óbvio, que o valor de 25% do salário mínimo não corresponde ao necessário para a vida digna do cidadão brasileiro, que, segundo os dados científicos precisa de no mínimo 88% de sua renda de até 1 salário mínimo para suportar as despesas básicas. Hoje o salário mínimo no país é de R$ 1.212,00.

Assim, o mínimo existencial, na forma estabelecida pelo Decreto no 11.150/2022, corresponde a R$ 303,00, valor bem inferior ao necessário para a compra de uma cesta-básica no Brasil, que custa R$ 663,29, segundo o DIEESE, o que compromete cerca de 55% do salário mínimo. Percebe-se, também, que nem mesmo o valor do salário mínimo atual suporta todas as despesas básicas do cidadão. Estudos do DIEESE apontam que o salário mínimo ideal no Brasil, para uma família composta por quatro pessoas, deveria ser, em julho de 2022, R$ 6.527,67. 20. Logo, o montante de R$ 303,00 decretado pelo presidente da República como suficiente para a sobrevivência digna do cidadão é mais de 20 vezes menor do que é de fato necessário.

Segundo dados do Serasa, o brasileiro tem encontrado sérias dificuldades para adimplir as contas básicas, como água e luz. Há um aumento na inadimplência destas despesas: em dezembro de 2021, o atraso nas contas básicas representava 23,9% das dívidas das famílias brasileiras, perdendo apenas para os débitos com instituições financeiras e cartões, 27,7%. Nesse cenário, a fixação do mínimo
existencial em 25% do salário mínimo tem o condão de instituir no Brasil uma verdadeira escravidão financeira, em contraponto a um aumento exponencial da lucratividade dos bancos. Isso porque, nos termos do Decreto no 11.150/2022 combinado com a recente Medida Provisória no 1.106/2022, que aumentou a margem de consignado para 45% e estendeu a contratação de empréstimos consignados a beneficiários do BPC/LOAS e dos auxílios sociais, um cidadão poderá ter 120% da sua renda comprometida para pagamento de dívidas, ou seja, estará institucionalizado no país o custo de vida negativo!

Percebe-se que os termos do Decreto desconsideraram por completo toda a realidade social do país, na qual a miséria cresce a cada dia. Deixou de lado, ainda, as políticas de prevenção e tratamento do superendividamento instituídas pela Lei no 14.181/2021, que trouxe mecanismos efetivos de aprimoramento da concessão do crédito, preservação da dignidade do consumidor e fomento do adimplemento de dívidas.

Causa espécie, também, a preterição de toda a discussão sobre o mínimo existencial promovida pelas entidades de proteção do consumidor, como o Instituto Defesa Coletiva, que foram completamente silenciadas na regulamentação de um tema de fundamental importância para a recuperação da dignidade dos mais de 30 milhões de cidadãos brasileiros superendividados, em total ultraje aos arts. 4o, II, b; 5o, V; 105 e 106, IX, todos do CDC, que fomentam a participação democrática das associações no Sistema Nacional de Defesa do
Consumidor.

Nessa linha de intelecção, conclui-se que o Decreto no 11.150/2022 afronta, a um só tempo, os seguintes ditames da Constituição da República: (i) art. 1o, III, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro; (ii) art. 3o, II e III, por não contribuir para o desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza e da marginalização, nem para a redução das desigualdades sociais; (iii) art. 5o, XXXII, porque cabe ao Estado promover a defesa – e não a exposição – do consumidor; (iv) art. 6o, por privar o cidadão de seus direitos sociais; (v) art. 7o, IV, uma vez que o valor do salário mínimo não arcará com as necessidades básicas dos consumidores; (vi) art. 84, IV, pois que o ato normativo transbordou os seus limites regulamentares ao esvaziar o conteúdo da Lei no 14.181/2021; e (vii) art. 170, V e VII, pois a ordem econômica tem entre seus objetivos assegurar a existência digna, com base na justiça social, fundamentada nos princípios da defesa do consumidor e da redução das desigualdades regionais e sociais, o que não ocorrerá com a aplicação do Decreto.

O Decreto no 11.150/2022 desrespeita, também, as diretrizes internacionais de proteção à dignidade da pessoa humana, tal como consubstanciado no art. 25, 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU: todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

Para findar, garantir o mínimo existencial não constitui um favor, pelo contrário, deve ser um dos principais objetivos de um Estado Democrático de Direito que se preze. Permitir que o cidadão viva com R$ 303,00, inundado por dívidas impagáveis, publicidades predatórias das instituições financeiras, sem qualquer garantia de sobrevivência digna relega o consumidor a uma verdadeira escravidão
contemporânea. Portanto, é uma conta que não fecha!

E se a conta não fecha, é urgente a revogação do Decreto no 11.150/2022 e a consequente adoção da Tabela de Mínimo Existencial escalonada pela renda do consumidor como garantia e resgate da dignidade e cidadania da população brasileira.

 

*Lillian Salgado é advogada e sócia fundadora do escritório Lillian Salgado Sociedade de Advogados. Também é presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva, Diretora de Proteção de Dados dos Segurados do INSS do IEPREV, Membro do Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais e Conselheira do Fundo Estadual de Direitos Difusos- FUNDIF.

 

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